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INCONFIDÊNCIA MINEIRA: REVOLTA, MITOS E CONTRADIÇÕES NO BRASIL COLONIAL

Por João Felipe Elache¹


 
"Entre o ideal de liberdade e os limites da história: os fatos, os mitos e as influências por trás da Conjuração Mineira"

Tiradentes

Nota do autor


Esta obra é fruto de uma investigação baseada em fontes históricas, estudos acadêmicos e registros disponíveis sobre a Inconfidência Mineira e sua possível relação com a Maçonaria.


Não se pretende aqui apresentar uma verdade absoluta, mas sim reunir impressões fundamentadas, fatos documentados e interpretações historiográficas que permitem uma compreensão mais ampla e crítica dos eventos. O conteúdo foi elaborado a partir da bibliografia consultada e das evidências disponíveis até o momento.


Que este material sirva como ponto de partida para reflexões, estudos e novos olhares sobre um dos episódios mais simbólicos da história brasileira.


Contexto Histórico (Finais do século XVIII)

No final do século XVIII, a capitania de Minas Gerais era a mais próspera do Brasil colonial, enriquecida pela exploração do ouro e dos diamantes. Cidades como Vila Rica (atual Ouro Preto) chegaram a ter dezenas de milhares de habitantes, atraindo a atenção da metrópole portuguesa. Contudo, a produção aurífera começou a declinar nas décadas de 1770-1780, enquanto a Coroa mantinha taxas elevadas. O Marquês de Pombal, então primeiro-ministro de Portugal, havia aumentado a carga fiscal sobre a colônia após o terremoto de 1755, visando financiar a reconstrução de Lisboa. Essa política acentuou o desgaste nas relações entre colonos e metrópole, já tradicionalmente tensas pela cobrança do quinto (20% de todo ouro extraído) e outras obrigações.


O estopim veio com a iminência da derrama, que seria a cobrança forçada dos impostos atrasados para se atingir a cota anual de 100 arrobas de ouro exigida pela Coroa. Em 1788, o Visconde de Barbacena, novo governador de Minas, recebeu ordens para aplicar essa medida drástica, mesmo com a economia mineira em crise pela queda da extração aurífera. A notícia alarmou a elite local, endividada e descontente, antecipando planos de revolta caso a derrama fosse mesmo executada. Além do fator econômico, ideias iluministas fermentavam entre parte dos colonos instruídos: obras de pensadores como Rousseau, Montesquieu e Voltaire circulavam clandestinamente, propagando ideais de liberdade e criticando o absolutismo. Eventos externos também inspiravam esses colonos – especialmente a independência dos Estados Unidos em 1776, que provava ser possível colonos romperem com a metrópole. Há relatos de que Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, andava pelas ruas de Vila Rica trazendo consigo um exemplar da Constituição americana, entusiasmado com seu exemplo. Em suma, Minas Gerais vivia a convergência de crise econômica, opressão fiscal e novos ideais políticos, um caldo histórico que deu origem à chamada Inconfidência Mineira em 1789.


Os Inconfidentes: Envolvidos, Motivações e Objetivos

A Inconfidência Mineira foi articulada por um grupo relativamente pequeno, composto majoritariamente por membros da elite socioeconômica de Minas Gerais. Entre os conjurados havia proprietários de terras e minas, altos oficiais militares, poetas, advogados, padres e outros profissionais liberais da região. Tiradentes – alferes (tenente) do Regimento de Dragões – era uma figura de origem mais modesta dentro do grupo e destacou-se como entusiasta das ideias revolucionárias, razão pela qual é frequentemente lembrado (ele de fato foi uma exceção, por não pertencer à elite endinheirada). Outros participantes notáveis incluíam o coronel Francisco de Paula Freire de Andrade (comandante militar em Vila Rica), os poetas e juristas Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga, o minerador Inácio José de Alvarenga Peixoto, o jovem José Álvares Maciel (recém-chegado da Europa com livros e conhecimentos científicos iluministas) e o padre José da Silva e Oliveira Rolim, entre outros. Cada um tinha motivações diversas para a conspiração: alguns temiam a ruína financeira com a derrama; outros ambicionavam maior autonomia política e cargos no novo governo que planejavam; e havia quem genuinamente abraçasse os ideais iluministas de liberdade e república.


Os objetivos dos inconfidentes, ainda que não formalizados em manifesto público, ficaram evidentes nos depoimentos colhidos depois pela Coroa. Eles pretendiam proclamar a independência da capitania de Minas Gerais, rompendo com o domínio português, e implantar uma república inspirada no modelo dos Estados Unidos. Planejavam estabelecer um governo com eleições anuais para cargos dirigentes, incentivar a instalação de manufaturas (para reduzir a dependência da economia exclusivamente mineradora) e criar uma espécie de guarda nacional formada pelos próprios cidadãos de Minas. Também cogitavam fundar uma universidade em Vila Rica, para difundir o conhecimento localmente (já que os brasileiros só podiam cursar ensino superior em Portugal). Um lema em latim chegou a ser associado ao movimento: "Libertas quae sera tamen" (“Liberdade ainda que tardia”), frase de inspiração clássica que simbolizava o anseio de liberdade mesmo vindo depois de anos de opressão – esse lema, dizem, seria estampado na bandeira da nova república.


Um ponto revelador das contradições internas era a questão da escravidão. Muitos inconfidentes eram proprietários de escravizados, e não havia consenso sobre libertá-los caso a revolta tivesse sucesso. Tiradentes e alguns poucos teriam defendido ao menos a liberdade para os escravos nascidos no Brasil após a independência, mas outros conspiradores preferiam manter a escravidão, temendo perder patrimônio e apoio de seus pares. O plano de insurreição previa deflagrar a revolta no dia da cobrança da derrama: os conspiradores aproveitariam a tensão do momento para tomar o controle de Vila Rica, possivelmente prender (ou até assassinar) o Visconde de Barbacena e, assim, iniciar um levante que poderia se espalhar por outras capitanias. Cogitava-se buscar adesão especialmente do Rio de Janeiro – então sede do governo colonial e porto indispensável para escoar a produção mineira – unindo Minas e Rio num novo país independente. De fato, a conspiração não visava libertar todo o Brasil colonial, mas sim a região de Minas Gerais (e aliados estratégicos como o Rio) do jugo português. O conceito de “nação brasileira” ainda era embrionário naquela época; o movimento tinha um caráter regional, refletindo os interesses e a liderança de Minas. Os inconfidentes chegaram a sondar potências estrangeiras em busca de apoio: houve acenos não concretizados de emissários norte-americanos e promessas vagas de auxílio francês. Em essência, seus motivos combinavam o pragmatismo econômico e ambição local com os ideais iluministas de liberdade – ingredientes típicos das revoltas emancipatórias no período colonial.


Libertação ou Revolta de Elite? (Controvérsias Historiográficas)

Até hoje historiadores debatem a natureza da Inconfidência Mineira: teria sido um genuíno movimento libertário e precursor da independência do Brasil, ou apenas um levante elitista motivado por interesses próprios, carregado de contradições? Há elementos para sustentar múltiplas interpretações, e o tema permanece aberto a análises.


Por muito tempo, especialmente no imaginário popular e na historiografia mais antiga, os inconfidentes foram celebrados como heróis protomarcadores da liberdade no Brasil. Nesse ponto de vista, a Conjuração Mineira seria um ensaio da independência (que só viria em 1822), inspirada pelos mesmos ideais de liberdade, e Tiradentes surgiu como um mártir desses ideais. Essa visão enfatiza o caráter republicano e iluminista do movimento – de fato, seus participantes liam autores filosóficos e defendiam conceitos de autodeterminação, chegando a sonhar com uma república anos antes de qualquer país sul-americano concretizá-la. Contudo, pesquisas mais recentes trazem nuance e evitam o romantismo simplista. Marco Antonio Villa, por exemplo, argumenta que a Inconfidência Mineira não pretendia libertar “o Brasil” como um todo – ela visava Minas Gerais (e eventualmente o Rio de Janeiro) e não contou com participação popular ampla. Diferentemente da Conjuração Baiana de 1798, que teve envolvimento de camadas populares e chegou a pregar abertamente a abolição da escravatura, o movimento mineiro ficou restrito a uma elite de intelectuais, clérigos, militares e fazendeiros locais. Não se sabe se obteria apoio do povo caso eclodisse; o complô foi delatado antes que qualquer mobilização popular ocorresse de fato. Assim, muitos historiadores hoje enfatizam o caráter elitista da conspiração mineira – uma revolta de senhores contra a Coroa, mais interessada em aliviar impostos e preservar suas riquezas do que em mudanças sociais profundas.


Outra controvérsia recai sobre as contradições do movimento. Embora pregassem liberdade e tivessem um discurso progressista para a época (república, fim do monopólio colonial, educação superior local, etc.), vários inconfidentes demonstravam pouca intenção de estender essa liberdade a todos. A manutenção da escravidão na sociedade que planejavam, apoiada por boa parte deles, é frequentemente citada como prova de que sua busca de “liberdade” era limitada e excludente. Ou seja, a Inconfidência pode ser vista como paradoxal: ao mesmo tempo em que bebia das fontes iluministas de igualdade, mantinha péssimos no passado colonial escravista. Alguns historiadores apontam que mesmo figuras centrais, ao serem perdoadas anos depois, acabaram se acomodando ao regime vigente – José de Resende Costa (filho) e outros, por exemplo, após cumprirem penas de degredo na África, retornaram ao Brasil e alinharam-se aos interesses da Coroa que antes combatiam. Esses fatos temperam a imagem idealista do movimento.


Em resumo, há consenso quanto a certos aspectos: a Inconfidência foi importantíssima enquanto expressão da insatisfação colonial e trouxe à tona ideias novas no cenário brasileiro; foi, porém, abortada antes de virar ação concreta e organizada. Há divergências, entretanto, quanto à sua abrangência e legado imediato: para alguns, um embrião da independência brasileira; para outros, um levante regional de ricos proprietários tentando evitar impostos, com alcance popular duvidoso. O que parece claro é que, apesar de suas limitações, a Inconfidência Mineira se tornou um símbolo maior com o passar do tempo – muito além do que provavelmente representou em 1789. Essa transformação simbólica está ligada, em grande medida, à construção de mitos históricos sobre o movimento, especialmente em torno da figura de Tiradentes, conforme veremos a seguir.


Mitos e Verdades sobre a Inconfidência (e Tiradentes)


Mitos e Verdades sobre a Inconfidência (e Tiradentes)

Litografia do artista Décio Villares (1890) retratando Tiradentes com traços de mártir – barba longa e semblante sereno –, numa representação alegórica que remete diretamente à iconografia de Jesus Cristo. Essa imagem, criada mais de 100 anos após os fatos, ilustra o processo de mitificação do líder inconfidente pelo imaginário republicano.


Como muitos eventos históricos, a Inconfidência Mineira acumulou, ao longo de dois séculos, uma série de mitos populares – narrativas simplificadas ou embelezadas – que nem sempre correspondem aos registros da época. A figura de Tiradentes em particular foi alvo de forte construção mítica, a ponto de ele ser frequentemente comparado a um “cristo da libertação brasileira”. No entanto, a história documentada revela diferenças marcantes entre o mito e a realidade:

• Tiradentes “de barba e cabelos longos”: A imagem clássica de Tiradentes, presente em pinturas famosas como “Tiradentes esquartejado” de Pedro Américo (1893) ou na litografia acima de Décio Villares, mostra-o com longa cabeleira e barba espessa, aludindo a Jesus Cristo. Na realidade, não existe retrato contemporâneo de Tiradentes – ele não foi pintado ou fotografado em vida. Os registros indicam que, como militar (alferes) em serviço colonial, ele mantinha cabelo curto e, no máximo, um pequeno bigode, pois barba longa era proibida na tropa. Além disso, no dia de sua execução, Tiradentes estava de barba feita e cabeça raspada, já que era praxe raspar os condenados à forca. Ou seja, a figura barbuda é uma construção artística posterior. Essa representação surgiu deliberadamente no fim do século XIX: em 1890, logo após a Proclamação da República, Villares produziu a litografia que o equipara a Cristo, e Pedro Américo, em 1893, reforçou o imaginário do mártir santo ao pintar Tiradentes com expressão beatífica e seu corpo dilacerado compondo a silhueta do mapa do Brasil. Tudo isso servia a um propósito simbólico do novo regime republicano, que precisava de heróis fundadores.


• Herói nacional vs. Real importância na conjuração: Não há dúvida de que Tiradentes participou ativamente da conspiração – foi um dos mais entusiastas propagandistas da ideia de revolta, percorrendo cidades para angariar simpatizantes. Entretanto, a imagem dele como líder supremo do movimento é questionável. Os próprios autos do processo (Devassa) registram muito pouco sobre o pensamento de Tiradentes em si, além de listar seus bens; não há documentos escritos por ele expondo um plano político detalhado. Figuras como Gonzaga, Cláudio Manuel ou Alvarenga Peixoto possuíam estatuto social e influência provavelmente maiores para estruturar o novo governo caso a rebelião vingasse. Tiradentes acabou se tornando o bode expiatório perfeito: era o conspirador de patente mais baixa e sem proteção de família influente, e assumiu boa parte da culpa ao ser julgado, talvez esperando salvar os colegas. Foi o único condenado à morte, enquanto os demais receberam penas de prisão ou exílio. Isso sugere que, no contexto de 1792, ele não era visto pela Coroa como um líder aristocrático perigoso (diferente de um Gonzaga, por exemplo), mas como um agitador – perigoso, porém descartável politicamente. O mito do “herói nacional” de Tiradentes foi forjado mais tarde, especialmente a partir de 1890, quando a República brasileira recém instaurada buscava personagens históricos para exaltar como pioneiros de seus ideais. Os republicanos no poder, interessados em se legitimar, transformaram aquele alferes executado um século antes no mártir da liberdade por excelência, promovendo feriados (21 de abril, data de sua morte, tornou- se feriado nacional) e erigindo monumentos em sua memória. Consenso entre historiadores é que essa construção foi intencional: “a República recém implantada precisava criar seus heróis, e Tiradentes se prestava bem ao papel, pelas circunstâncias trágicas de sua morte e pelas ideias republicanas dos inconfidentes” explica o historiador Villa. Portanto, boa parte da aura heroica de Tiradentes – o santo laico da pátria – provém dessa interpretação posterior e não de uma liderança inequívoca comprovada nos fatos de 1789.


• Objetivos do movimento – independência do Brasil? É comum ouvir que os inconfidentes “lutaram pela independência do Brasil”. Trata-se de uma meia-verdade. Mito: que Tiradentes e seus companheiros já vislumbravam libertar todo o território brasileiro do domínio português. Verdade: eles planejavam a independência de Minas Gerais (e eventualmente alguma forma de confederação com outras capitanias simpatizantes, como Rio de Janeiro), mas não havia um projeto para libertar todas as capitanias. De fato, em 1789 a ideia de “Brasil” unificado era difusa – cada capitania tinha interesses próprios. Os conjurados mineiros focavam em seu contexto regional: queriam livrar Minas da opressão fiscal e administrativa, obtendo autonomia para gerir suas riquezas. Não estavam mobilizando, por exemplo, Bahia, Pernambuco ou outras regiões numa insurreição geral. Só décadas depois, já no século XIX, o ideário de independência se nacionalizaria de fato. Assim, é um anacronismo creditá-los diretamente como “movimento de independência do Brasil”, embora sejam corretamente vistos como precursores do sentimento emancipacionista que se espalharia mais tarde.


• Outros mitos diversos: Ao longo do tempo, várias lendas menores surgiram. Uma delas é que Tiradentes teria sobrevivido à execução graças a uma suposta ajuda secreta (essa é bastante fantasiosa: teorias conspiratórias alegaram que a maçonaria o substituiu por outro condenado na forca e ele fugiu – não há qualquer evidência disso, e sabemos que Tiradentes jamais saiu do Brasil antes da prisão, tampouco falava línguas estrangeiras, o que inviabiliza a hipótese de ter sido ocultado no exterior). Outra meia-verdade comum é atribuir aos inconfidentes um ideal abolicionista: na realidade, como visto, a maioria não planejava abolir a escravidão de imediato, com exceção de sugestões tímidas de libertar os nascidos após a independência. Também se discute o destino da cabeça de Tiradentes – exposta em Vila Rica como aviso, ela teria desaparecido misteriosamente (possivelmente retirada por simpatizantes para lhe dar sepultura digna, embora isso nunca tenha sido comprovado e permaneça no terreno das suposições). Em suma, distinguir o que é mito e o que é verdade histórica na saga da Inconfidência exige olhar para os documentos da época e para o contexto posterior de construção da memória. Hoje, os historiadores procuram desmontar visões maniqueístas e heroicas simplificadas, mostrando Tiradentes e seus pares como personagens complexos, com virtudes e contradições, inseridos em tensões muito reais do Brasil colonial. Conhecer esses nuances não diminui a importância da Conjuração Mineira, mas enriquece nossa compreensão, separando a realidade dos adornos simbólicos criados posteriormente.


Inconfidência Mineira e Maçonaria: Vínculos e Influências

Outra questão intrigante – e cercada de especulações – é a suposta relação entre os inconfidentes e a Maçonaria. Dado que a maçonaria europeia desempenhou papel notável na difusão de ideias iluministas e na independência de alguns países (vários líderes da independência americana e das revoluções europeias eram maçons), não é surpresa que se questione se Tiradentes e seus companheiros teriam sido membros de lojas maçônicas ou influenciados diretamente por elas. Porém, ao examinar os fatos, a maioria dos historiadores é cautelosa: não há evidências documentais concretas de que os inconfidentes eram maçons ativos, e qualquer ligação deve ser entendida mais no campo das ideias do que de filiação formal.


É importante lembrar que, durante quase todo o período colonial, a Coroa portuguesa proibia sociedades secretas na colônia, e a maçonaria – nascida na Europa – ainda engatinhava no Brasil. A primeira loja maçônica oficialmente documentada em território brasileiro data de 1797, em Salvador (Bahia), chamada Cavaleiros da Luz. Isso ocorreu quase dez anos após a Inconfidência Mineira de 1789. Portanto, no momento da conspiração mineira, não existia uma estrutura maçônica estabelecida e reconhecida no país. Alguns autores especulam que poderiam haver lojas clandestinas em Minas Gerais antes disso ou que certos inconfidentes teriam sido iniciados maçons em viagens ao exterior. Por exemplo, José Álvares Maciel estudou na Europa e teve contato com círculos ilustrados; não se descarta completamente que ele ou outros tenham frequentado lojas maçônicas em Londres, Lisboa ou Paris. Entretanto, “não existe nenhum documento que indique que [Tiradentes] pertenceu à Ordem Maçônica”, afirma categoricamente o historiador Hamilton Sampaio Junior. O próprio Tiradentes, ao que tudo indica, nunca viajou para fora do Brasil – não falava outra língua e não há registro de passagem dele pela Europa ou mesmo pela Bahia (onde supostamente funcionariam lojas secretas). Assim, a hipótese de ele ter sido iniciado maçom é altamente improvável, praticamente descartada pelos especialistas. Em suma, Tiradentes não era maçom de acordo com o conhecimento atual, e o mesmo vale para os demais conjurados conhecidos.


Por outro lado, é inegável que ideias alinhadas às da maçonaria – como os princípios de liberdade, igualdade e fraternidade – circulavam entre os inconfidentes. Essas ideias, porém, provinham da literatura iluminista francesa, do exemplo da independência americana e do espírito racionalista da época, não necessitando de uma filiação maçônica para serem absorvidas. Alguns símbolos associados posteriormente ao movimento mineiro têm paralelos maçônicos: por exemplo, o triângulo (presente na bandeira proposta de Minas Gerais e hoje símbolo do estado) poderia remeter à Santíssima Trindade ou mesmo ao triângulo maçônico que simboliza igualdade e perfeição. No entanto, não há prova de que os conjurados escolhessem esse símbolo por influência direta de lojas – é uma interpretação posterior. De fato, a própria designação “Libertas Quae Sera Tamen” tem origem clássica (poeta Horácio) e foi adotada mais tarde como lema, sem relação específica com ritual maçônico.


Alguns estudos historiográficos exploram possíveis conexões indiretas. Por exemplo, houve participação de maçons na Conspiração dos Alfaiates (Salvador, 1798), onde a loja Cavaleiros da Luz atuou na difusão de panfletos revolucionários. No caso de Minas, sabe-se que vários inconfidentes se correspondiam com ilustrados de outras partes e estavam cientes de sociedades filosóficas e talvez secretas. Mas a ausência de documentação torna qualquer afirmação sobre “a Inconfidência foi obra da maçonaria” mera especulação. O mais correto é afirmar que a Inconfidência partilhava do mesmo caldo ideológico que influenciava maçons e liberais mundo afora – o Iluminismo – mas não há comprovação de organização maçônica na conspiração. Conforme concluiu Sampaio Junior, especialista no tema, a maçonaria organizada só surgiria de fato no Brasil com o Grande Oriente do Brasil em 1822; antes disso, mesmo que pudessem existir reuniões isoladas, “não temos nenhum documento provando” vínculos formais dos inconfidentes com lojas ativas.


Em suma, a possível relação entre os inconfidentes e a maçonaria permanece no terreno nebuloso entre mito e realidade. Consenso entre historiadores: não há evidência factual de que Tiradentes ou os demais conjurados eram maçons iniciados. Ponto de discussão: reconhece-se, contudo, que eles foram influenciados pelas mesmas ideias iluministas que nutriam a maçonaria e outras sociedades secretas ilustradas do século XVIII. A simbologia e retórica libertária dos inconfidentes, portanto, dialoga com o ideário maçônico, mas provavelmente por convergência de contexto intelectual, não por pertencimento institucional.


Conclusão

A Inconfidência Mineira permanece um capítulo fascinante e complexo da história do Brasil. Seu fracasso em 1789 não impediu que se tornasse, com o tempo, uma semente de consciência nacional e um símbolo – ainda que moldado por mitos – da luta contra a opressão colonial. Entre a realidade de uma conspiração de elite, motivada por impostos e privilégios, e o sonho heroico de liberdade que a posteridade lhe atribuiu, reside a riqueza de sua história. Entender suas nuances – o contexto econômico, os personagens diversos com seus ideais e contradições, os debates historiográficos sobre seu significado, os mitos construídos e as influências ideológicas – nos ajuda a apreciar por que a Inconfidência Mineira continua a inspirar estudos, debates e o imaginário popular, mais de dois séculos depois de Tiradentes ter proclamado (segundo a tradição) o lema “Libertas quae sera tamen”, acreditando que, ainda que tardia, a liberdade enfim chegaria.


Fontes consultadas: Estudos históricos e materiais didáticos sobre a Inconfidência Mineira e Tiradentes, bem como análises recentes que confrontam mitos e fatos desse movimento. As divergências e consensos citados refletem interpretações de historiadores baseadas em documentos como os Autos da Devassa (processo judicial da época) e em pesquisas modernas.


Bibliografia comentada

Autos da Devassa da Inconfidência Mineira (Arquivo Nacional)

Conjunto de documentos oficiais produzidos durante o processo judicial movido pela Coroa Portuguesa contra os inconfidentes. Fonte primária essencial para entender as motivações, depoimentos e penas aplicadas aos envolvidos.


Marco Antônio Villa – A Inconfidência Mineira: Atualidades e Controvérsias

Obra crítica que analisa os mitos construídos em torno da Inconfidência, com foco especial na figura de Tiradentes e no uso político do movimento pela República. Villa enfatiza o caráter elitista da conspiração e desmonta várias narrativas heroicas tradicionais.


Hamilton Sampaio Junior – A Maçonaria e os Mitos sobre Tiradentes

Estudo que investiga as possíveis conexões entre a Maçonaria e os inconfidentes. O autor mostra, com base documental, que não há evidência de que Tiradentes ou seus companheiros fossem maçons formalmente iniciados, embora compartilhassem ideias comuns.


Fundação Cultural Palmares – Tiradentes: Mito e Realidade

Publicação institucional que analisa a construção simbólica da imagem de Tiradentes, comparando o personagem histórico com a figura mitificada após a Proclamação da República.


José Murilo de Carvalho – A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil

Clássico da historiografia brasileira que mostra como o regime republicano precisou inventar símbolos e heróis nacionais – sendo Tiradentes o principal deles. Explica como o mito foi construído no fim do século XIX.


Ricardo Ferreira – Ideologia e Sociedade na Inconfidência

Obra que investiga as ideias políticas e sociais presentes no movimento, contextualizando os inconfidentes dentro das correntes do iluminismo e da realidade colonial brasileira.


 

¹ Irmão João Felipe Elache é Mestre Instalado da ARLS Seguidores de Hiram 158 – 30ª Região Maçônica da GLESP, Grau 32 do REAA


Irmão João Felipe Elache

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